2024/03/27

"Escândalo na TV" - Jornalistas e comentadores não conseguem ver


O eleitor de direita é capaz de achar que há duas direitas. 

Uma que joga o "jogo democrático" e aproveita-o para aprovar medidas que vão ao encontro dos seus objetivos. “Jogar o jogo democratico” inclui aceitar apoios de grandes empresários, em tudo assimétricos face aos partidos à esquerda, e usar órgãos de comunicação social colocados ao seu dispor por outros grandes empresários, que lhe garantem o oligopólio do comentário político (tido como “independente”, embora expressamente convidado para corroborar a sua narrativa)


E, depois, há uma outra direita mais impaciente, que gostaria de impor um ritmo bem mais acelerado às transformações que a direita em geral defende. E para isso, joga em dois tabuleiros antagónicos: “joga o jogo democrático” – e isso inclui os instrumentos semelhantes aos da outra direita – mas ao mesmo tempo aproveita-o para desestabilizar o “jogo democrático”, porque acha que é o próprio sistema que obstaculiza os seus objetivos. Para isso, desmultiplica-se em mensagens histriónicas, anti-constitucionais e contraditórias, porque sabe que isso atrai jornalistas e comentaristas; fomenta a discórdia porque a própria imagem da discórdia é a “prova” da corrupção do sistema que diz combater e da qual quer emergir impoluta.

O problema surge quando a primeira direita acha que, porque existem objectivos comuns, é possível fechar uma aliança entre as duas direitas. Ora, a segunda direita usará todos os “acordos” para baralhar, porque essa é a sua estratégia contra o sistema democrático. 

Essa aliança seria apenas viável se houvesse um acordo entre os empresários apoiantes das duas direitas. Mas nessa altura, estaremos a falar do fim do regime democrático. 

O problema de tudo isto é que jornalistas e comentadores não percebem ou, percebendo, não querem ver e tomar partido. Alegam que, em nome do “jogo democrático” não se pode ir contra quem joga “o jogo antidemocrático”. Tornam-se assim marionetas permeáveis à estratégia dessa “outra direita”. 

Ontem foi exemplar. Ora veja-se.

"Com uma bancada tão indisciplinada e imprevisível [acha mesmo que não foi planeado?!] como é uma bancada com 50 deputados do Chega!, até é bom que [Diogo Pachego de Amorim (DPA)] esteja lá com autoridade na mesa para os controlar. Isso é bom para o Parlamento. (...) Ou então vamos ter na mesa um hooligan como vice-presidência da AR? Não é o perfil de Diogo Pacheco de Amorim. E mais, já agora diria outra coisa: o DPA tem muitos anti-corpos porque é conotado com o antigo regime. Ora, se ele for eleito vice-presidente da AR (...) isso demonstra a superioridade moral da democracia. É uma vitória do 25 de Abril sobre figuras como DPA que prefeririam um regime em que isto não seria possível. E portanto, se houver esta inteligência, imaginação de dialogar com o Chega!, consegue-se pelo menos controlar os danos que já estão já estão a ser provocados logo no primeiro dia". (Filipe Luís, comentador da RTP)

"O Chega! não é maldição nenhuma. É um partido que até entrou no Parlamento em 2019 e tem crescido e continua a crescer. É o que é. Faz parte da democracia. E a democracia tem de saber lidar com o Chega!, como o Chega! tem de saber lidar com a democracia. Não estou a dizer que é fácil, que é equitativo, que o Chega! se comporta bem. Não é isso que eu digo. O que eu digo é que convém aprender. (...) Uma coisa o PSD já entendeu: é que não pode lidar como lidou nas últimas 24h. Não pode pôr pessoas na televisão a dizer o que lhes apetece, ainda por cima o Nuno Melo ou o Paulo Rangel (...) a dizerem que não há acordo nenhum. Em "on". (...) É complicado. Não estou a justificar a atitude do AV ou dos seus deputados... mas que o Nuno Melo disse, disse; ou que Paulo Rangel disse, disse. E se calhar convém perceber que se querem fazer um acordo, façam-no. Se calhar, mais vale dizer que há acordo, tornar públicas as negociações, mais vale fazer tudo às claras. E por que não querem fazer? Não querem fazer porque pensam que é uma cedência. Mas o problema é que não fazê-lo, ou fazê-lo de uma forma - e a expressão não tem sentido pejorativo - meia dissimulada, isso depois dá campo para AV (...). O Chega! poderá ter sempre tendência, não estou a dizer que há fórmula mágica; estou a dizer é: quanto mais as coisas forem dissuladas, quanto menos forem assumidas, mais campo se dá ao Chega!. Essa é a lição de hoje." (Ricardo Costa, director da Sic Notícias)


E passadas 12 horas sobre o ocorrido no Parlamento, o boicote feito pela extrema-direita - como o retratou expressamente a Agência EFE - foi plenamente erodido do espaço de comunicação. O boicote passou a ser "um impasse". Os jornalistas recusam-se a tomar partido ou simplesmente a ver. 

"Pedro Nuno e Montenegro reúnem-se esta manhã para desbloquear presidência da AR. (...) É a primeira vez que os dois se reúnem formalmente e o motivo é tentar encontrar uma solução para o impasse na eleição da presidência da Assembleia da República. (...) Nos corredores, jornalistas e deputados tentavam compreender o insólito da situação" (Ana Sá Lopes, Público)

"O que se passou ontem foi o primeiro retrato de um país num impasse depois de umas eleições legislativas que deram uma maioria muito curta à Aliança Democrática (AD) e um terceiro maior partido com vontade de mostrar ao que vem: ora vestindo a pele de salvador da AD, o que terá com certeza uma moeda de troca, ora assumindo-se como líder da oposição se as propostas da AD passarem com o apoio do PS. Em qualquer dos cenários, Ventura joga para exibir o poder que ganhou. (...) Mas o que foi no mínimo estranho foram as explicações que se seguiram. André Ventura tanto disse que tinha havido um acordo com o PSD como disse que não tinha havido conversas. Ficámos sem perceber o que aconteceu. (...) E um sinal de que os tempos que se seguem vão ser marcados pelo caos. (...) Se não se tratasse de um tema relevante, isto era só uma brincadeira" (Marta Moitinho Oliveira, Público)

E é isto.

Quatro actos de uma aldrabice

Primeiro acto. D urante a campanha eleitoral, os dirigentes da coligação AD esquivaram-se a explicar se o seu "choque fiscal" em I...