2024/04/13

Quatro actos de uma aldrabice

Primeiro acto. Durante a campanha eleitoral, os dirigentes da coligação AD esquivaram-se a explicar se o seu "choque fiscal" em IRS seria ou não uma sobreposição às medidas que já tinham sido aprovadas em 2023 pelo Governo PS para ser aplicadas em 2024. A questão foi colocada nomeadamente nos debates e Luís Montenegro esquivou-se a ser claro. 

Nota. A direita em campanha eleitoral tende a mentir sempre. Isso porque a sua política é, na realidade, a da austeridade. A política de austeridade passa pela contensão salarial (para aliviar os "custos" das empresas, ao mesmo tempo que coloca a classe trabalhadora em sentido); passa pelo corte nas despesas públicas (ou seja, nos rendimentos indirectos dos cidadãs, sobretudo dos mais pobres); e pelo alívio nos impostos dos rendimentos mais elevados. A direita em campanha promete dar mais do que isso, mas quando chega ao poder "descobre" que a situação era "pior do que imaginara" - e aplica apenas a sua política de austeridade. Foi assim em 2011 e é agora em 2024. 

Em 2024, esta estratégia prosseguiu já no poder. E houve jornalistas - uns por confiança ideológica, outros por ingenuidade - que interpretaram um "nim" por um "sim". E arriscaram.

Expresso, 12/4/2024

Acto dois. Quando as perguntas são feitas à la pelotão de fusilamento - como fez José Rodrigues dos Santos no Telejornal da RTP ao ministro das Finanças Joaquim Miranda Sarmento (ver aqui, ao minuto 9'22'', ou melhor só ao 11'38'' porque o ministro quis fazer uma introdução para afirmar o desígnio das finanças sólidas...) - as respostas têm de ser claras. E quando não o são, torna-se clara a mentira. Ou antes: a tentativa de, pela omissão, esconder a verdade. 

No fundo e por junto, a medida em IRS da AD vai apenas aliviar MAIS os rendimentos mais elevados.

 


Acto três. Depois de terem sido enganados, os jornalistas queimam a fonte. E bem!  (ver a aqui a nota completa da direcção do Expresso, para que se entenda a dimensão do embuste e da ingenuidade jornalística).


Acto quatro. Apanhado a mentir, o Governo tenta uma saída a la advogado. Afirma que nunca mentiu porque nunca respondeu à pergunta feita (ver aqui a nota oficial do Governo). Disse sempre uma meia verdade, mas nunca disse a verdade toda.

 


 

Em vez daquela jura que os membros do Governo fazem na tomada de posse - "Eu abaixo assinado, juro solenemente pela minha honra que cumprirei com lealdade as funções que me são confiadas" - dever-se-ia, sim, jurar "dizer sempre a verdade, toda a verdade e não mais do que verdade". 

Não foi o caso. E, desta vez, correu mal.

 

2024/04/12

Austeridade 2

Duas notas sobre o debate do programa do recém-empossado Governo (ver aqui a sessão da manhã e aqui a sessão da tarde). 

Primeira nota: o recém-empossado primeiro-ministro Luís Montenegro deixou por responder as críticas à esquerda sobre a evolução futura dos salários. 

    --> A subida do salário mínimo passará a estar dependente da evolução futura da inflação e da produtividade, quando - segundo o Acordo de Médio Prazo de Melhoria dos Rendimentos, dos Salários e da Produtividade assinado pelo Governo PS (procurar aqui em 2022) - a subida prevista até 2026 ficaria bem acima da subida do salário médio, acima da inflação e da produtividade previstas. Ou seja, prevê-se menores rendimentos para os trabalhadores mais pobres, com benefício das empresas.

    --> A subida do salário médio será abrandada. Promete-se para 2030 a mesma meta que o tal Acordo de Médio Prazo previra para... 2028, meta essa que já estava aquém da recuperação do poder de compra perdido nos últimos anos e ainda mais da descida do peso dos salários no PIB, verificada desde o início do século 21. Ou seja, menores rendimentos para a média dos trabalhadores, com benefício das empresas

    --> A subida dos salários foi minada pela decisão do Governo AD de isentar os prémios de contribuições sociais, reivindicação proposta pela CIP, cabeça pública das grandes empresas de Portugal. Uma medida que prejudica as pensões futuras dos trabalhadores e "diz" os trabalhadores "não contribuam para a Segurança Social".

    --> Essa subida salarial foi igualmente minada pela ideia patronal de, em vez de aumentar salários nominais, é melhor baixar o IRS - mesmo dos rendimentos mais elevados. Coloca-se assim o Estado a "subsidiar" as empresas. 


Segunda nota: o espectáculo circense da discussão do programa aproxima-se mais de uma visita a uma ala esquizofrénica. 

Políticos assumidamente defensores da liberdade dos mercados - como os do PSD, CDS, IL e extrema-direita - omitem olimpicamente o que se passou nas últimas décadas em Portugal, quando se aplicaram todo o escol de políticas liberais (como na Habitação). Esquecem ainda que estão a repetir propostas, muitas vezes nos mesmos termos, apresentadas em 2003 (por Durão Barroso e Bagão Félix), em 2011 (por Passos Coelho e Paulo Portas). Políticas que não tiveram, qualquer eficácia, se não concentrar a riqueza nalguns ou contribuírem para o afunilamento em sectores de actividade de baixo valor.

E tudo é pretexto para pedir ainda mais liberalismo, mais "reformas necessárias e urgentes" em defesa dos lucros das empresas. 

"Só a pequenês e a inveja podem justificar esta perseguição aos lucros" (dixit a líder da bancada da IL). Ainda ontem o deputado do Bloco de Esquerda José Soeiro lembrou a abertura do Governo para abrir ao sector privado os serviços de cuidado aos idosos, numa experiência falhada pelo mundo fora em que, no final, o Estado será chamado a tapar os buracos - criminosos - deixados pela ganância de distribuir dividendos...   

E depois criticam a esquerda pela miséria do Socialismo...!  

 



2024/04/03

Austeridade à vista 1

 

O primeiro-ministro ontem empossado deu no seu discurso diversos sinais de querer aplicar uma "política de austeridade". 

Relembre-se que a "política de austeridade" não é uma política de "contas certas" nem de "rigor orçamental". Historicamente - como o frisa Clara E. Mattei no seu livro A Ordem do Capital  - são políticas que surgem num contexto de grande contestação social e que visam disciplinar a população, em benefício da velha ordem a preservar. É "uma arma política contra o seu próprio povo"; tem sido uma forma de dizer às classes trabalhadoras que voltem "ao seu lugar".  E isso faz-se através de políticas que desviam "recursos da maioria que trabalha para a minoria que poupa/investe" e, ao fazê-lo, obriga "a uma aceitação pública de condições repressivas da produção económica".  

Luís Montenegro enumera - como é habitual nos discursos -  objectivos sociais e económicos.   Mas - há sempre um "mas" - avisa de um estado de emergência que obrigará a medidas graves, habituando já os portugueses para o que aí vem.

2024/04/02

"O dia antes antes do fim" - Objectivo: emprego

 

Fonte: INE, Estimativas Mensais do Emprego e Desemprego

O desafio do emprego é grande para o XXIV governo recém empossado. 

De acordo com as Estimativas Mensais de Emprego e Desemprego hoje divulgadas pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), Portugal registou um aumento de emprego de cerca de 930 mil pessoas entre fevereiro de 2013 e o fevereiro de 2024. Esse aumento ultrapassou mesmo a perda de 590 mil postos de trabalho verificada entre fevereiro de 1998 e fevereiro de 2013, a maior parte registada desde a crise financeira internacional de 2007 e após 2010 quando se defendeu o virtuosismo de medidas de austeridade como factor de aumento de competitividade nacional.

Registe-se que, no conceito estatístico de "empregado", integra-se todo aquele que trabalhou pelo menos 1 hora na semana em que realizou o inquérito.

Apesar disso ou por isso, continua a registar-se um volume considerável de pessoas que querem trabalhar e não encontram trabalho. Aqui considera-se não apenas os desempregados, mas igualmente os que estatisticamente  são considerados como inativos, mas que declararam querer trabalhar. 

Fonte: INE, Estimativas Mensais do Emprego e Desemprego

Em fevereiro passado, eram cerca de 630 mil pessoas, o que corresponde a uma taxa de desemprego em sentido lato de 11,9%. Registe-se que o universo deste grupo de pessoas chegou a atingir quase 1,5 milhões de pessoas em 2013, quando se defendeu o virtuosismo das políticas de austeridade. 

Tentando aprofundar um pouco estes valores, sublinhe-se a situação dos mais jovens (até aos 25 anos). 

Fonte: INE, Estimativas Mensais do Emprego e Desemprego

A taxa de emprego - que mede o peso dos empregados com essa idade no conjunto da população desse escalão etário - é visivelmente distinta caso se trate de jovens ou não jovens. Enquanto 2 em cada 3 não jovens têm emprego, entre os jovens,  2 em cada 3 não têm emprego. Apesar da melhoria verificada desde meados de 2013, interrompida com a recessão pandémica de 2020 (em que os jovens foram particularmente lesados), os valores registados em 2024 ainda estão aquém da realidade de 1998, quando os jovens tinham taxas de emprego de quase 50%. 

Por isso se compreende a ênfase com os jovens no discurso do recém empossado PM. Mas veremos como pretende este Governo resolver a situação.

Cuidado com as modas que vêm de Paris

Reaquadramento do Fotograma do filme "O Garoto"

O Governo francês quer reduzir a duração do subsídio de desemprego de 18 para 12 meses. 
 
Há 12 anos, o Governo Passos Coelho, compostos pelos partidos PSD e CDS, cortou a metade a duração do subsídio de desemprego, reduziu o seu montante máximo e acabou com um montante mínimo. Presentemente, a duração do subsídio de desemprego oscila entre 330 e 540 dias, consoante a idade do desemprego e os descontos sociais realizados, embora o trabalhador desempregado possa ainda beneficiar da anterior legislação (entre 270 a 900 dias), caso o trabalhador não tenha ainda ficado desemprego depois da entrada em vigor dessa nova lei de 2012.
 
Este corte mantém-se em vigor até agora, apesar de o PS ter, na altura, criticado a medida. Por essa razão, cresceu o número de desempregados sem qualquer protecção.
 
O argumento da medida em França como em Portugal foi o mesmo: estimular a procura de emprego por parte dos desempregados, como se o desemprego fosse algo voluntário e representasse um incentivo à preguiça. Na verdade, o corte visou fazer com que os desempregados aceitassem trabalhos em piores condições salariais (vidé estudos do FMI)

Recorde-se que a desvalorização dos salários chegou a um tal ponto que, as mesmas pessoas que defenderam estas medidas (como é o caso de Luís Montenegro, ex-líder parlamentar do PSD ao tempo de Passos Coelhio e PM hoje a ser empossado, ou Miguel Poiares Maduro, ex-ministro desse Governo e hoje comentador e responsável na Fundação Calouste Gulbenkian pela encomenda de um estudo sobre a evolução salarial - ver aqui e aqui) já se mostrarem presentemente preocupados que o salário mínimo se esteja a aproximar perigosamente dos salários médios. E contudo, ainda hoje, não não dão mostras de perceber que contribuíram para isso. 
 
Por isso, atenção com as modas que vêm de Paris.

2024/03/31

"Diário de um vampiro" - Ontem como hoje

Público, 31/3/2014
 

Nem de propósito. 

Há dez anos, as eleições municipais francesas castigaram o Partido Socialista dando a maior votação à direita em mais de 155 cidades (incluindo Paris) e promovendo a extrema-direita francesa em dez cidades. Paulo Rangel, hoje ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, ouvido nessa noite pela SicNotícias, disse que os resultados mostravam que "as políticas socialistas não são alternativa". Contudo, o PS francês acabara penalizado precisamente por não aplicar as políticas socialistas e render-se às políticas de austeridade... de direita. 

O mundo discutia já o que fazer com o conflito latente entre Rússia e Ucrânia. E cá em Portugal - ao mesmo que sindicalistas se uniam para defender a Segurança Social pública - entrava em vigor mais austeridade pela mão do Governo Passos Coelho: o corte nas pensões acima dos mil euros, tanto da Caixa Geral de Aposentações como da Segurança Social, penalizando cerca de 165 mil pensionistas. 

Público, 31/3/2014
 

O cabeça de lista do PS às eleições eurpeias, Francisco Assis, era ouvido pelo jornal Público e apelidava o governo Passos Coelho de ser "ideologicamente extremista" e "funcionalmente incompetente" por estar a "estar a destruir algumas conquistas que foram consensualmente conseguidas". Por seu lado, o economista João Ferreira da Cruz lembrava (numa pequena caixa ao texto de opinião de António Correia de Campos sobre a Ucrânia), que, na altura havia em Portugal cerca de 2 milhões de portugueses pobres (viviam com um rendimento abaixo dos 409 euros, a linha da pobreza) e 18,7% dos portugueses, em 2012, em risco de pobreza. 

Frise-se: os mesmos dois milhões - ou seus filhos e filhos deles - de que falava já nos anos 90 e mesmo agora passadas cinco décadas sobre o 25 de Abril!

"É fruto dos erros da austeridade reforçada, da desvalorização do trabalho, dos cortes das pensões, da destruição desigual dos benefícios sociais, da negação de oportunidades. Mas as estatísticas escondem uma realidade mais dura. Por efeito da austeridade, o PIB per capita baixa e em consequência o limiar de pobreza (60% do rendimento mediano) também baixa, agravando a insuficiência de recursos da população." 
Convinha aprender com o passado. 

Público, 31/3/2014


2024/03/30

"Boa noite e boa sorte" - Se a extrema-direita é um problema internacional, então a solução...


 "(...), os sociais-democratas acreditam que uma governação que comece por resolver os problemas do dia-a-dia na saúde, na educação, na habitação e nos serviços públicos vai acabar por esvaziar o voto de protesto. Nesse sentido, o novo governo, liderado por Luís Montenegro, não tem tempo a perder para começar a trabalhar."  (Público, 30/3/2024)

 

Parece um raciocínio claro. Se resolvermos as razões do protesto popular, acabaremos com o voto de protesto popular. 

A única questão que falta saber é perceber o que torna difícil resolver as razões desse protesto. Mas aqui não vai ser fácii: 1) porque o programa eleitoral da Aliança Democrática (aqui) é parco em diagnósticos e a sua política tem até aqui contribuído para um recuo dos gastos públicos em saúde, educação, habitação, ao mesmo tempo que privilegiam o predomínio das regras de mercado (exemplo da Lei Cristas na habitação); 2) porque, hoje em dia, a política decidida a nível nacional corresponde a uma margem estreita da decisão política e o que é determinado ou definido a nível europeu difiicilmente será questionado por um país pequeno como Portugal. 

E se a política europeia não é alterada, manter-se-ão as razões do voto de protesto. Por isso, tem sido cada vez mais difícil a nível europeu evitar a participação da extrema-direita nos governos. E se essa política produz estes efeitos e se não é alterada, é porque corresponde às necessidades de quem beneficia dela.

Há, pois, um défice de debate sobre as causas do voto de protesto. 

Veja-se a entrevista hoje publicada no Público a uma investigadora finlandesa Sanna Salo (aqui).

Quatro actos de uma aldrabice

Primeiro acto. D urante a campanha eleitoral, os dirigentes da coligação AD esquivaram-se a explicar se o seu "choque fiscal" em I...